A alegria manifestada por alguns entrevistados, em meio ao mar de histórias pavorosas, seria apenas a inflexão involuntária da enorme carga de tensão interna que o espírito não consegue mais sufocar, extravasada no sorriso bobo e falso dos anônimos do documentário. Ali, naquelas sujas paredes, naqueles apertados apartamentos, encontram-se fotografias de várias almas, corpos, vidas... miscelâneas postas para estudarmos um pouco a natureza humana quando postas em um mesmo recinto, sofrendo as mesmas cargas de dramaticidade das histórias que permeiam o edifício. Roubos, prostituição, descaso, falta de humanidade, misturadas aos pequenos universos-problemas de cada morador.
E um desses moradores foi objeto de minha observação mais demorada.
Escrevo sobre Marcelo. Jovem aparentemente de seus 33 anos de idade. Perfeito carioca no jeito de falar, bem articulado com as palavras. A entrevista concedida aos diretores do documentário discorre na sala do seu apartamento. Poucos móveis. Na sala há também uma pequena mesa com computador. Talvez seja ali onde passe a maior parte do seu tempo; quando não está ausente do edifício, que é verdadeiramente o que mais acontece. Uma senhora que presta serviços de doméstica passa suas camisas, dando-nos a entender, que nosso personagem mora sozinho.
No universo de Marcelo, o edifício Master é fortemente marcado pela diversidade de pessoas estranhas. Pessoas que não se entendem; que brigam o tempo todos com seus vizinhos; que alugam os quartos para aliciamento de mulheres e homens; por isso, sempre que pode, está ausente, longe do tumulto e da violência impregnada nos corredores do edifício. Desconfiado dos outros hóspedes que moram no mesmo ambiente, Marcelo reproduz, de maneira resumida, o mundo violento e opressivo das ruas de Nova York, no célebre filme de Martin Scorcese, estrelado pelo talentoso Robert de Niro, Taxi Drive. O medo constante de uma agressão vinda dos excluídos, dos paranóicos, da gente escorraçada nos guetos da cidade infestada de criminosos, tudo se reproduz de maneira atenuada, mas não menos sintomática, na vida de Marcelo como morador do edifício Master.
No caso de Marcelo não seria o fato de tanta gente desqualificada, ou escórias, como traduz o filme, convivendo no mesmo espaço que lhe inspira o medo constante, mas a quantidade de pessoas. Os constantes problemas alheios, que transpondo portas, adentram, sem convite, à sala, os quarto, e evidentemente, à vida dos outros moradores vizinhos.
Outro viés da película documentista de Eduardo Coutinho nos inquiri a fazer a seguinte pergunta objetiva: quais foram as histórias apropriadas por outros moradores e reproduzidas, sem o devido cuidado, pelo entrevistado? Pois dessas entrevistas obtivemos um resultado de certo ar de decadência moral, por parte dos moradores, muito forte na narrativa de Marcelo. Como pode ele ser referência da realidade vivida ali, se o mesmo afirma que passa a sua vida mais longe, do que propriamente morando lá. O que o oprime de fato são as paredes do edifício, ou sua vida subjetiva, que como falei na introdução, recebe um estímulo externo quando ele começa a transpor a porta de entrada do Master?
A narração de Marcelo deixa evidente, muito mais na sua atitude perante as câmeras e os entrevistadores, que algo de artificialmente foi criado para compor seu receio na multidão estranha onde vive. Não temos como negar os fatos objetivos de tentativa de suicídios, falta de organização, de lei, de pudor e de moral ocorridas em todos esses anos no edifício, mas muito do que Marcelo descreveu, parecia descrever a vida lá de fora que ele fez questão de trazer para dentro do Master, assim como outros moradores também o fizeram, para dar vazão aos seus temores e paranóias do cotidiano, muito além dos muros e das grades.
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